sexta-feira, fevereiro 11, 2005

As tres vidas do homem do pescoço partido

O melhor guarda-redes de que provavelmente nunca ouviu falar chamava-se Bernd Carl Trautmann, que em alemao quer dizer «homem de confiança». Nasceu em Bremen, em 1923. E se o lugar-comum manda dizer que certas vidas davam um filme, esta ultrapassa largamente a norma. Os primeiros tempos tornam-no num heroi improvavel: Trautmann foi um dos muitos milhoes seduzidos pela retorica nacionalista de Hitler e fez-se militante da juventude hitleriana. Alistado nas forças nazis, como para-quedista, apresentou uma folha de serviços em que coragem, inconsciencia e rebeldia se misturavam em doses iguais.
Com a farda nazi, algumas semanas depois de ter escapado a um julgamento por sabotagem, o jovem soldado Trautmann ganhou uma Cruz de Ferro na terrivel batalha de Arnhem (Holanda), no final da qual esteve tres dias soterrado nos escombros de um celeiro. O seu percurso na II Guerra faz lembrar os filmes de Steve McQueen: capturado pelos russos, evadiu-se de um campo de prisioneiros. Seguiu-se a Resistencia francesa e depois os americanos sempre com o mesmo desfecho. ? quarta foi de vez. Como nos filmes, os soldados ingleses receberam-no de espingardas apontadas e, segundo Trautmann, com um caloroso «Ola Fritz, vai uma chavena de cha?».
O futebol so aparece mais tarde. Com a Guerra a terminar, no campo de prisioneiros de Ashton-in-Makerfield, Trautmann encontrou a paz. Jogava a bola com outros presos e, aos poucos, começou a integrar-se na comunidade. Libertado em 1948, tornou-se agricultor, e começou a jogar na baliza do clube amador de St. Helens, onde um dia foi detectado por um caçador de talentos de Manchester.
Sem experiencia profissional, Trautmann so precisou de meia duzia de treinos para convencer os tecnicos do City. Agil, louco, destemido até a inconsciencia, o alemao era um predestinado. Faltava o mais dificil: convencer os adeptos, naqueles anos em que ser alemao era sinonimo de marginalizaçao. Uma manifestaçao de milhares vincou o desagrado pela contrataçao, mas foi Alexander Altmann, o Rabi de Manchester a sair em sua defesa: «Nenhum homem pode ser julgado em nome de um povo inteiro». Os adeptos ouviram e aceitaram julga-lo em campo.
Segue-se um «fast forward» de sete anos de exibiçoes miraculosas que lhe deram a reputaçao de melhor guarda-redes da Liga. Até ao dia 5 de Maio de 1956, em Wembley, em que o City, pela segunda vez consecutiva, tentava conquistar a Taça.
Nessa tarde, diante do Birmingham, Trautmann, que britanizara o nome para Bert, fez o jogo da sua vida numa vitoria por 3-1. Mas mais do que as incontaveis defesas, o que ficou para a historia foi o dialogo com o principe Filipe, que entregou taça e medalhas: «Por que jogou os ultimos minutos com a cabeça de lado?». «N?o sei, Alteza, nao consigo mexer o pescoço», respondeu impassivel. Radiografado no final do jogo, Bert descobriu ter jogado a ultima meia hora com o pescoço partido em dois sitios. Seguiram-se meses de recuperaçao, o estatuto de heroi atribuido pelos jornais e a adoraçao do povo, mas também a tragédia: a morte de um filho, atropelado quando brincava na rua, a que se seguiu um penoso divorcio e uma depressao profunda.
Com 34 anos parecia acabado para o futebol. Mas foi nas balizas que voltou a equilibrar a vida: contra todas as expectativas, o regresso a Maine Road, em 1957, acentuou a lenda de indestrutivel, e permitiu-lhe atingir o impressionante numero de 545 jogos pelo City, até a despedida, em 1964, com 40 anos. 60 mil assistiram ao seu jogo de homenagem. Bobby Charlton chamou-lhe entao o melhor guarda-redes de todos os tempos. Poucos o contestaram.
Nem a reforma foi igual as outras. Depois de curta passagem pelo Portsmouth, como treinador, tornou-se observador da Federaçao Alema, que o fez correr mundo, em especial Africa, a procura de novos talentos. So perto dos 80 anos o homem do pescoço partido assentou de vez, regressando a Alemanha, com memorias suficientes para encher tres vidas.


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http://www.maisfutebol.iol.pt/noticia.php?id=310187&div_id=1476