quarta-feira, abril 05, 2006

O Norte

Primeiro, as verdades. O Norte é mais Portugues que Portugal. As minhotas sao as raparigas mais bonitas do Pais. O Minho é a nossa provincia mais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia sao as maiores e mais impressionantes que ja se viram. Viana do Castelo é uma cidade clara. Nao esconde nada. Nao ha uma Viana secreta. Nao ha outra Viana do lado de la. Em Viana do Castelo esta tudo a vista. A luz mostra tudo o que ha para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se ve nas arvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades. No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços sao mais baixos. Nao é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas sao as verdades do Norte de Portugal. Mas ha uma verdade maior. É que so o Norte existe. O Sul nao existe. As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Nao se junta. Nao se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro. Os nortenhos nao falam do Norte como se o Norte fosse um segundo pais. Nao haja enganos. Nao falam do Norte para separa-lo de Portugal. Falam do Norte apenas para separa-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, ha o Norte e ha o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do pais e so ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como pais inteiro. Patria mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera regiao da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores sao um caso a parte. Em qualquer caso, os lisboetas nao falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensivel a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente . No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Esta muito estragado, mas é um estragado portugues, semi-arrependido, como quem nao quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio nao é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservaçao fantastica de (algum) Alentejo é impecavel, porque os alentejanos sao mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas . O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte da nas vistas sem se dar por isso . As raparigas do Norte tem belezas perigosas, olhos verdes-impossiveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se poem a escrever-se sozinhos. Tem o ar de quem pertence a si propria. Andam de maos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas nao dao confiança. Olho para as raparigas do meu pais e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito . Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atras das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que tem os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas a maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimonias e os maridos, mas gosto delas. Sao mulheres que possuem; sao mulheres que pertencem . As mulheres do Norte deveriam mandar neste pais. Tem o ar de que sabem o que estao a fazer. Em Viana, durante as festas, sao as senhoras em toda a parte. Numa procissao, numa barraca de feira, numa taberna, sao elas que decidem silenciosamente. Trabalham tres vezes mais que os homens e nao lhes dao importancia especial. So descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade. Ao principio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatorio. Gostavam do Norte so porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada portugues escolher, de cabeça fria e coraçao quente, os seus pedaços e pormenores. Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, ja escolheram. Ja nascem escolhidos. Nao escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, poem acima dessas terras a terra maior que é o 'O Norte'. Defendem o 'Norte' em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este sacrificio colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. No Porto, dizem que as pessoas de Viana sao melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana nao sao tao autenticas como as de Ponte de Lima . Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita. O Norte nao tem nome proprio. Se o tem nao o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Tras-os-Montes, se é litoral ou interior, portugues ou galego? Parece vago. Mas nao é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as arvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas maos em cima de nos, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar . O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nos todos, é um nome do Norte. Nao é so o nome do Porto. É a maneira que tem de dizer 'Portugal' e 'Portugueses'. No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse so um nome. Como 'Norte'. Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que nao é assim que nos chamamos todos?
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Miguel Esteves Cardoso